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 DÉCADAS DE LUTA E TRANSFORMAÇÃO 

Ano de 1961. Os países se recuperavam, após 16 anos, das feridas sociais e econômicas abertas pela Segunda Guerra Mundial. Politicamente, 61 foi um ano instável. Em 3 de janeiro, os Estados Unidos da América cortam relações diplomáticas com Cuba, dois anos depois de Fidel Castro assumir o poder na ilha. Depois de 14 anos, o Brasil retoma relações diplomáticas com a URSS. No dia 13 de agosto, o Muro de Berlim, que dividiria politicamente o mundo, começa a ser erguido.

Foi também em 61, na cidade de Gorizia, ao norte da Itália, que os conceitos de tratamento psiquiátrico começaram a ser repensados. Sob a direção do Hospital Psiquiátrico de Gorizia, o psiquiatra Franco Basaglia criticou a postura tradicional da postura médica, que transformava o indivíduo e seu corpo em objetos de intervenção clínica. Ele assume uma posição crítica frente à psiquiatria hospitalar, pela sua centralidade no princípio da internação como modelo de tratamento, excluindo o paciente do convívio social.

No livro “Instituição Negada: relato de um hospital psiquiátrico”, de 1985, Basaglia relata sua vivência dentro do hospital. O psiquiatra conta, na página 17, que: “no momento em que entramos nesse hospital, dissemos um não, não à psiquiatria, mas, sobretudo, à miséria”. Junto com sua equipe, Franco melhora as condições dos leitos e humaniza o cuidado aos pacientes.  Essas mudanças no Hospital de Gorizia têm a finalidade de transformá-lo em uma comunidade terapêutica.

História: fotografias antigas de hospitais psiquiátricos no Brasil

Durante o processo de implementação dessas mudanças, Franco Basaglia foi percebendo que eram necessárias alterações profundas nas relações entre a sociedade e a pessoa com doença mental e no sistema de atendimento psiquiátrico vigente.

Aos 46 anos, em 1970, Franco Basaglia foi nomeado diretor do Hospital Provincial na cidade de Trieste e, imediatamente, começou o processo de fechamento daquela unidade. Ele articulou a substituição da intervenção hospitalar e manicomial por uma rede territorial de atendimento, ideia que surgiu a partir do acúmulo de experiência e dos bons resultados em Gorizia.

O objetivo principal era a reintegração das pessoas com doença mental ao convívio social, com autonomia e plena cidadania. Para promover a integração do paciente na comunidade, a rede territorial de atendimento contava com serviços de atenção comunitários, emergências psiquiátricas em hospitais gerais, cooperativas de trabalho protegidas, centros de convivência e moradias assistidas.

Ficou clara a melhora dos pacientes. E, com isso, em 1973, a Organização Mundial de Saúde (OMS) credenciou o Serviço Psiquiátrico de Triestre como referência mundial para uma reformulação da assistência em saúde mental, contribuindo para que, em 1978, fosse lançada a Lei 180/78, conhecida também como Lei da Reforma Psiquiátrica Italiana, que "proíbe a recuperação de qualquer cidadão em hospitais psiquiátricos, declara que o vínculo entre doença mental e periculosidade não tem sustentação científica e, em substituição aos hospitais psiquiátricos, prevê a construção de serviços comunitários".

  Psiquiatra Jean-Pierre Hargreaves fala sobre a Reforma: 

As práticas terapêuticas e a luta por uma sociedade de inclusão, que pudesse abrigar as pessoas com doença mental, defendida por Basaglia, se tornaram conhecidas mundialmente e inspiraram diversos países a repensarem suas formas de tratamento psiquiátrico.

Então, a reforma psiquiátrica, nascida na Itália, fica conhecida por ter, como uma de suas vertentes principais, a desinstitucionalização, com a consequente desconstrução dos manicômios.

A substituição progressiva dos manicômios por outras práticas terapêuticas e a cidadania do doente mental se tornaram objeto de discussão não só entre os profissionais de saúde, mas também em toda a sociedade.

 A REFORMA BRASILEIRA 

Após todo o trabalho realizado nos hospitais psiquiátricos e o reconhecimento de sua nova forma de tratamento, Basaglia viajou por diversos países, transmitindo seus ideais de reestruturação do sistema de assistência em saúde mental. 

Ele chega ao Brasil em meados dos anos 70, quando o país ainda estava mergulhado na Ditadura Militar repressora, e vê suas ideias sendo bem recebidas por um bom número de profissionais de saúde mental. Entre o fim dos anos de 1970 e o fim dos anos 80, a reforma psiquiátrica brasileira passa por um momento de crescente debate no meio acadêmico.

Mas, esse cenário só foi possível em razão dos esforços realizados pela psiquiatra Nise da Silveira vários anos antes.

No ano de 1944, Nise começa a trabalhar no então chamado Centro Psiquiátrico Pedro II, em Engenho de Dentro, subúrbio do Rio de Janeiro, onde se depara com técnicas psiquiátricas agressivas e que não apresentam melhorias efetivas nos “clientes”, nome dado por Nise aos pacientes.

  Vice-presidente da Casa das Palmeiras fala sobre Nise: 

"Quando a doutora Nise começa a trabalhar em Engenho de Dentro, ela, de alguma maneira, se revoltou com as atitudes dos psiquiatras e com as práticas usadas na época, como eletroconvulsoterapia (passagem de uma corrente elétrica de alta voltagem sobre a região das têmporas, a fim de provocar dessincronização traumática da atividade cerebral do paciente), lobotomia e vários outros métodos agressivos”, relata o psiquiatra Jean-Pierre Hargreaves, vice-presidente da Casa das Palmeiras.

No lugar das tarefas tradicionais de limpeza e manutenção das dependências do hospital, que os internos exerciam sob o título de terapia ocupacional, Nise cria ateliês de pintura e modelagem, permitindo que os clientes reatassem os vínculos com a realidade através da expressão criativa. Assim, em 1946, Nise funda, na instituição, a Seção Terapêutica Ocupacional.

 

Durante o restante de sua vida, ela dedica sua vida à luta antimanicomial e revoluciona a psiquiatria praticada no país.

"Hoje, uma grande parte dos estudos psiquiátricos focam na questão do diagnóstico, na visão que a doença é orgânica e no tratamento com ênfase maior na medicação. Já existem medicações que controlam os sintomas. Então, de alguma madeira, não se precisa da internação. A questão da medicação, junto com mudanças políticas internas, foram os fatores que contribuíram para a questão da desospitalização”, explica Hargreaves.

Para Nise, a terapia ocupacional permitia, segundo suas próprias palavras, "a expressão de vivências não verbalizáveis, que nos clientes graves estão fora do alcance das elaborações da razão e da palavra".

 Jean-Pierre Hargreaves 

 psiquiatra 

EXEMPLO DE FORÇA E OUSADIA

 

A aparência frágil nunca determinou o tamanho da coragem de Nise da Silveira. Nascida em 1905 e criada em colégio de freiras, a alagoana, filha de um jornalista, ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia aos 15 anos. Foi a única mulher em uma turma com 156 homens. Aos 21, já estava formada. Após a morte do pai, mudou-se para o Rio de Janeiro com o marido, um colega de faculdade. Passou em um concurso de Psiquiatria para trabalhar no Hospital da Praia Vermelha.

Em 1936, durante a Ditadura de Vargas, foi denunciada por portar obras de Marx e presa por envolvimento com o comunismo. Após cumprir pena de quase dois anos, ficou mais oito anos afastada do serviço público e, quando voltou, em 1944, foi trabalhar em Engenho de Dentro, para onde o hospital havia sido transferido. Durante o tempo em que ficou afastada, surgiram, na Psiquiatria, tratamentos de extrema violência, vistos, na época, como uma inovação tecnológica. Entre eles, lobotomia e eletrochoques.

Nise se confrontou com esses métodos e, negando-se a se utilizar deles, foi encaminhada para cuidar do Setor de Terapia Ocupacional, que consistia, basicamente, em colocar os internos para realizarem serviços gerais. Nise revolucionou essa ala, implementando a arte e o contato com os animais no tratamento de seus “clientes”. Foi uma grande seguidora da Psicologia Junguiana, e trocava conceitos e experiências com Carl Jung. Pelos impasses constantes e falta de reconhecimento em seu lugar de trabalho, Nise fundou, em Botafogo, a Casa das Palmeiras, onde lutou contra o confinamento hospitalar e intensificou seu trabalho com as atividades expressivas.

 

A partir de então, nunca mais parou. Morreu em outubro de 1999, deixando a referência de pioneirismo na Terapia Ocupacional e influenciando as reformas psiquiátricas que estariam por vir.

 Nise da Silveira 

 Imagem: reprodução 

 A LEI DA REFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL 

O crescimento gradual da mobilização pela reforma psiquiátrica envolveu grande parte dos profissionais de saúde mental. No dia 6 de abril de 2001, depois de 11 anos tramitando no congresso brasileiro, a Lei 10.216 foi aprovada. 

O artigo 3º da Lei da Reforma Psiquiátrica determina que: “É de responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais”.

Com base na lei italiana, o Estado rompe com sistema de internação da pessoa com doença mental e institucionaliza o uso da terapia ocupacional da doutora Nise como modelo de tratamento, além de reaproximar o paciente do meio social através das relações interpessoais.

Em 2004, a população se chocou com as denúncias sobre a situação degradante da Casa de Saúde Dr. Eiras, em Paracambi. O hospital psiquiátrico foi o maior da América Latina, com 2.550 internos, e funcionou por mais de 70 anos. Quando a prefeitura do município vistoriou o local, encontrou pacientes em péssimas condições de assistência e maus tratos. Funcionários relataram que não existia triagem ou legislação no Dr. Eiras. Um dos casos marcantes foi o de uma pessoa que sofreu AVC e, como a família disse não poder cuidar do doente, ele foi internado no hospital. 

Entre os serviços fornecidos pelos SUS, estão:

  • O Serviço de Residências Terapêuticas, que são casas, em espaços urbanos, constituídas para fornecer atenção às necessidades de pessoas com transtornos mentais graves que perderam os vínculos familiares e sociais. Há, no Brasil, 596 casas, totalizando 3.236 moradores.

  • O Programa de Volta para Casa, que garante assistência, acompanhamento e interação social fora da unidade hospitalar para os pacientes que apresentam histórico de um longo período de internação psiquiátrica. Nesse programa, o paciente recebe um auxílio de reabilitação pelo período de um ano, que pode ser renovado, se necessário. São, proximamente, 3.832 beneficiados.

  • Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), unidades médicas dedicadas ao cuidado, tratamento, atenção integral e contínua às pessoas com doenças mentais graves e persistentes, promovendo autonomia e união familiar do paciente. O município do Rio de Janeiro apresenta uma rede com 29 CAPS.

O caso Dr. Eiras foi amplamente repercutido na mídia e impactou a opinião pública, que, a partir de então, começou a servir de apoio à reforma psiquiátrica e à luta antimanicomial. No dia 17 de junho de 2004, o hospital foi interditado. 

Com a criação da Lei da Reforma Psiquiátrica, o Sistema Único de Saúde (SUS) se torna responsável por oferecer o suporte necessário para que a pessoa com doença mental passe por todo o processo de tratamento, desde o diagnóstico até o fornecimento de subsídios necessários para que o paciente retorne ao convívio social.

 Antiga Casa de Saúde Dr. Eiras, em Paracambi

 Imagem: reprodução  

 Luana Goloni, estudante de Psicologia, fala sobre a Luta      Antimanicomial e a abordagem do assunto nas universidades: 

Sendo 2016 um ano histórico para a luta antimanicomial, com a comemoração dos 15 anos da implementação da Lei de Reforma Psiquiátrica, ainda existem muitas demandas a serem cumpridas, além de uma ampliação do investimento governamental, que, atualmente, só aplica 2,3% do orçamento do SUS à saúde mental.

A reforma psiquiátrica, hoje defendida, é fruto de maturidade teórica e política alcançada ao longo das últimas décadas, com maior conscientização da sociedade civil. Isso é percebido pelo sucesso do filme “Nise - O Coração da Loucura”, em que Glória Pires interpreta a psiquiatra em seus dias de resistência contra os tratamentos invasivos no Hospital Psiquiátrico Pedro II, em Engenho de Dentro.

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